Alexandre Jardin
O Zebra
Consequências da sabotatem da primeira regra dos romances de amor
Em 1986, com apenas 21 anos, Alexandre Jardin publica Bille en Tête, que recebe o prémio do primeiro romance. Em 1988, reincide com O Zebra, também galardoado, agora com o prémio Fémina.
Filho e neto de gente célebre - de Pascal Jardin, cenarista e romancista que chega a chefe de gabinete de Pierre Laval, e do também escritor Jean Jardin - parece não querer deixar por mãos alheias a tradição familiar. Para Nadine Sautel (Magazine Littéraire, nº.257, Fev. 1988), qualquer dos dois romances de Alexandre se apresenta como uma «piscadela de olho» à produção dos seus ascendentes de quem no entanto se distancia pelo exibir de uma voz própria. E em ambos se assiste a uma destruição dos heróis que terá como objectivo tornar mais concreta a sua existência.
Em O Zebra, o protagonista é um notário de província quarentão de temperamento bizarro. Diverte-se a fabricar máquinas inúteis, e consegue o respeito dos vizinhos pela sua habilidade em cunhar moeda falsa, já que todos aspiram a possuir um exemplar. Tem como panaceia universal o clister - remédio que impõe aos seus subordinados - e apenas admite ser tratado pelo veterinário da zona. É casado há quinze anos com Camille, professora de matemática no liceu local, e tem dois filhos, o Túlipa e Natacha.
Um acidente de sua mulher leva-o a tomar consciência da rotina que se instalara na sua relação familiar e desencadeia o desejo de reanimar o estado de paixão inicial, adormecido pela vida em comum. Parte então à reconquista da sua mulher, acabando por tornar-se seu amante: leva-a a enganá-lo consigo próprio. Tendo reconhecido não lhe ser possível distinguir-se dos outros homens por uma qualquer capacidade invulgar, ou atingir a excelência em algum campo especial, resolveu transformar a sua vida conjugal numa obra prima (p. 39).
E a história começa onde todas as outras acabam, no «casaram-se, foram muito felizes e tiveram muitos meninos».
De facto, é a paixão não legalizada que normalmente serve de tema à literatura: apenas as relações problemáticas, sempre triangulares - seja o terceiro um indivíduo ou um impedimento de carácter social - permitem que se estabeleça uma situação de conflito suficientemente interessante para manter a atenção do leitor: «Nenhum herói de romance, do cinema ou do teatro o havia precedido no difícil caminho em que se lançava; Romeu seduziu uma Julieta que não conhecia, Julien Sorel inflamou uma desconhecida que já trazia o nome do senhor de Rênal, e Love Story retomou a história de um amor nascente. Todos se contentam em conquistar uma mulher que surge na sua existência; mas reconquistar a sua após quinze anos de casamento? Nenhum sedutor imaginário a isso se arrisca. E era isso exactamente que atormentava o Zebra; porque se Shakespeare, Stendhal e os maiores autores evitaram abordar o tema da reconquista, deve ser porque esta‚ impossível» (p. 21).
Ao pretender reconquistar a paixão «de anel no dedo», Gustave Sauvage, aliás o Zebra, propõe-se desempenhar uma «missão impossível», tanto a nível da vida real, como da literária. Primeiro, porque tem como grandes inimigos a rotina, o conhecimento do outro e o tempo - a paixão instala-se usualmente «à primeira vista» e alimenta-se do fantasiar sobre o outro que a vida em comum acaba por destruir. Depois, porque o texto se confronta com o campo de uma longa tradição, e não apenas romanesca, que durante séculos se tem reelaborado em torno do amor impossível e da paixão fatal. O amor de Gustave por Camille é possível e legal, e são estes dois aspectos que constituem a dificuldade literária que, conscientemente, se procura tornear, de modo a tornar a leitura minimamente sedutora: «A cultura não oferece qualquer exemplo de marido que reconquiste a mulher.» (p.103).
E Jardin joga na duplicidade, entre uma pseudo auto-biografia - que no final se revela da autoria de Camille - e o estatuto «não fictício» da sua personagem: «Ainda ignorava o que devia ter pressentido, se tivesse a coerência de uma personagem de romance; mas o Zebra tinha a ligeireza dos homens criados por Deus, e não por um romancista» (p.99).
Procurando vencer os impedimentos reais e literários, o Zebra torna-se simultaneamente espectador e actor da sua vida conjugal, criando encenações sucessivas dos momentos mais fogosos do passado para reatar as cinzas do presente. Os primeiros encontros são «re-presentados», num ritual entre mágico e religioso, na crença de que a repetição dos gestos e das falas, por uma qualquer estranha alquimia, permitisse reencontrar a sua essência original, anular o tempo e o seu desgaste: «a máscara da paixão talvez assim se tornasse rosto» (p.42).
O amor exibe-se como um jogo teatral apenas recuperável esporadicamente e através de dramatizações episódicas. Mas o jogo torna-se perigoso quando a paixão é reconhecida como ultrapassando a escala humana, e acaba por se revelar fatal. Zebra adoece – um tumor maligno corrói o seu corpo do mesmo modo que o sentimento corrói o seu coração -, descobre-se portador de um cancro, metáfora do amor, mas também da sua incompetência como personagem romanesca.
Fora a iminência da morte de Camille que despoletara o desejo de renovar a relação. É agora a sua própria morte que o torna eufórico, pela possibilidade de concretizar o anseio de viver cada hora como se fosse a última. E ao esforço para se sobrepor ao tempo pela intensidade, associa-se o desejo de perenidade, já que o projecto de Gustave se prolonga para além da sua morte física: com o auxílio de seu amigo Alphonse, continua a impor a sua presença através de cassettes, vídeo e cartas: «Meus queridos filhos, morro por não ter conseguido enganar a vossa mãe. Acreditai-me, a monogamia faz mal à vida conjugal...» (p.147).
O Zebra morre porque amou demais. Já morto, conclui que o amor total é uma miragem, um programa para semi-deuses - sabotando por esta via a «moral» de todos os romances de amor - e apresenta, como alternativa, através da palavra da sua viúva, uma nova moral, mais realista e mais humana (Camille): «teve a ideia de redigir um romance-verdade que os amantes, com aliança ou não, ofereceriam uns aos outros como quem diz: "Meu amor, faz-me ainda sonhar", um livro que daria vontade de voltar a casar com a sua mulher, de a tomar para si, uma obra que não se poderia fechar sem se agarrar na sua metade, deliciada, e a meterem-se no primeiro comboio para Veneza, a fim de voltarem a fazer a primeira viagem de núpcias.» (p. 198).
O Zebra é então um romance de amor, onde são utilizados todos os habituais condimentos de paixão e morte da tradição literária, mas transformados pelo valorizar da relação conjugal, pelo incitar à «legalidade».
Os aspectos mais dramáticos, ou mesmo macabros, são ultrapassados por um sentido muito fino do humor, que atinge o auge na quase hilariante cena do enterro do herói. Embora se notem ainda algumas, raras, hesitações a nível da intriga e uma ou outra personagem secundária seja introduzida com menor habilidade, não restam dúvidas de que Alexandre Jardin é um grande contador de histórias, e promete como romancista.
No que respeita ao aspecto editorial, há a referir a bonita capa de Emílio Vilar e uma revisão deficiente, que deixa aparecer Stendahl por Stendhal.
Helena Barbas [O Independente, 15 de Setembro de 1989, III p.35]
O Zebra - Alexandre Jardin, trad. de Maria da Graça Moraes Sarmento, Bertrand, Lisboa (1989)
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